Som e fúria

Vivemos num mundo de muitas vozes. Muita informação. Muito barulho por nada. Tempestades em copo d'água. Uma verborragia desenfreada. Parece que precisamos falar e ouvir o tempo todo. Ouvir a última do vizinho. As notícias do dia. Ouvir as sirenes, buzinas, o lamento do vencido, a comemoração do vencedor. A TV ligada por hábito. Ouvir e não calar. Falar sobre si. Sobre os outros. Sobre a última tragédia. Sobre o jogo de futebol. Sobre a previsão do tempo.

Parece até que o silêncio é pecado.

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Sobre a cegueira


“É dessa massa que nós somos feitos, metade de indiferença e metade de ruindade” José Saramago


Assisti Ensaio sobre a cegueira, filme de Fernando Meirelles inspirado no livro de Saramago. Assisti e não degluti ainda. Porque este é um filme para ser pensado e não apenas visto. Um filme que não é possível apenas ver e esquecer, ver e seguir como se nada tivesse acontecido. Se alguém sair do cinema do mesmo modo que entrou, sinto dizer, deve já estar cego.

Ensaio sobre a cegueira é um grande filme porque fala ao mesmo tempo sobre a grandeza e a mesquinhez do ser humano. Do quanto podemos ser medíocres, injustos e estúpidos. Do quanto podemos ser fortes, nobres e generosos. Do quanto não temos poder algum sobre as nossas reações em determinadas circunstâncias. Do quanto somos pequenos e egoístas e muito mais fracos do que pensávamos.

Já tinha ouvido falar que só somos realmente nós mesmos quando ninguém está olhando. Imagine então um mundo de cegos, onde ninguém vê e tem certeza que não está sendo visto. Agora imagine ser a única pessoa que pode enxergar em meio a este caos e esta desordem.

A figura misteriosa e sem nome da mulher do médico parece estar ali para equilibrar a balança. Sozinha ela consegue ser um contraponto para toda a destruição que há em sua volta. A única personagem que enxerga em meio aos cegos, parece ser também a única que vê além daquilo que os olhos normalmente mostram. É ela quem magistralmente consegue manter o equilíbrio e a sanidade. Uma fortaleza que faz com que os espectadores não percam as esperanças. E não falo da esperança de um final feliz, mas a esperança no ser humano.

Confesso que fiquei chocada. Não com as cenas, tampouco com o roteiro. Chocada com o que nós, seres humanos, somos capazes de fazer. Basta subverter a ordem. Uma situação limite. O poder. A humilhação. A patifaria. O abuso. A fome. O desespero. A traição. A canalhice. O maldito instinto de sobrevivência. A asquerosa falta de caráter. Falta de valores. De ética. De humanidade.

Mas o maior choque, sem dúvidas, é não conseguir imaginar e não saber como reagiria se estivesse imersa nesta massa atingida pela cegueira branca. E de acreditar, fortemente, que preferia ser apenas mais uma dentre os que não enxergam do que ver aquilo que a mulher do médico viu.

A cegueira reconfortante do dia-a-dia não é branca, mas camufla nossas fraquezas e adia as nossas dores. Nos torna fortes para enfrentar o mundo, que não é do jeito que a gente queria que ele fosse e que não está sob o nosso controle. Parece que tudo fica mais fácil quando a gente não vê certas coisas. Por isso, talvez a maioria simplesmente não queira abrir os olhos. Talvez a gente esteja se transformando mesmo nesta massa de ruindade e indiferença pouco a pouco. Porque tem muita gente por aí que vê, mas já está há muito tempo cego.