Som e fúria

Vivemos num mundo de muitas vozes. Muita informação. Muito barulho por nada. Tempestades em copo d'água. Uma verborragia desenfreada. Parece que precisamos falar e ouvir o tempo todo. Ouvir a última do vizinho. As notícias do dia. Ouvir as sirenes, buzinas, o lamento do vencido, a comemoração do vencedor. A TV ligada por hábito. Ouvir e não calar. Falar sobre si. Sobre os outros. Sobre a última tragédia. Sobre o jogo de futebol. Sobre a previsão do tempo.

Parece até que o silêncio é pecado.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Vale quanto pesa? A estética da magreza e o “Rodeio das Gordas”



Meninas, imaginem a cena: você está caminhando tranquilamente pelo campus da universidade onde estuda, quando é abordada por um rapaz – bem vestido, boa pinta, provavelmente estudante, como você – que inicia um papo trivial. Você continua caminhando, meio intrigada com a abordagem, mas não quer ser indelicada com o cara, que continua te seguindo e tentando manter uma conversa. Em alguns segundos, esse mesmo cara literalmente pula e “monta” em cima de você como se fosse um animal. Os amigos dele aparecem gritando e cronometrando quantos segundos ele conseguirá dominá-la, enquanto, naturalmente, você grita e tenta se desvencilhar da criatura.

Ãh? Cena bizarra? Improvável? Bem-vindas ao ambiente universitário brasileiro, berço de futuros e competentes profissionais das mais diversas áreas. A criativa “brincadeira” surgiu na Universidade Estadual Paulista (Unesp). O alvo são mulheres acima do peso. O chamado “Rodeio das gordas” ganhou repercussão nacional na última semana. Segundo reportagem do G1, “ao menos 50 estudantes participaram do jogo”. Os agressores utilizavam uma comunidade no Orkut para incentivar que os estudantes cronometrassem o tempo que mantinham a garota presa e para sugerir premiações para quem ficasse mais tempo sobre as meninas.

A comunidade ainda está no ar e em plena atividade. A descrição é nojenta: “Ora, não quer ser objeto de brincadeira no rodeio? Pare de comer que nem uma vaca e emagreça!”. As comunidades relacionadas são repulsivas: “Penetração corretiva – lésbicas”, “Contra o voto feminino”, “Eu espanco mulheres”, “A mulher é inferior ao homem”, entre outras.

Por coincidência, pouco antes de me deparar com essa notícia terrível, li alguns textos da jornalista Eliane Brum que falavam - de uma maneira sensível e inteligente - justamente sobre esse preconceito da sociedade com os gordos. Ela se pergunta: “qual é o nosso problema com os gordos? Por que muitos acham as gordas (e os gordos) repugnantes?(...) Segundo o senso comum, além de feios e preguiçosos, gordos também teriam falhas de caráter. E, como tudo, para as mulheres acima do peso é ainda pior. Neste mundo em que se compram peitos, bocas e bundas no crediário, soa imperdoável não arrancar a gordura à faca”.

Neste mesmo texto, Eliane diz que “os gordos parecem ser os leprosos do nosso tempo”. Quando me deparo com episódios como esse e com outros acontecimentos do dia a dia, começo a pensar que sim.

Por que relacionamos gordura com feiúra? Ou com doença? Conheço muita gente magra com altos índices de colesterol. Conheço muita gente gorda linda por dentro e por fora. Mas, como relembra Eliane, “Se você não disse ou pensou, já ouviu alguém dizer: ‘olha que gorda nojenta!’”. Gordo virou sinônimo de xingamento, ofensa. Basta lembrar que quando alguma celebridade engorda alguns quilos é motivo de críticas, chacota e vira notícia na mídia.

O mais interessante da nossa sociedade é que além de impor padrões e criar mecanismos de exclusão para aqueles que não se encaixam é o fato de não admitir mesmo aqueles que se aceitam e convivem bem com a diferença. Mesmo as mulheres independentes, bem-resolvidas, com a auto-estima em dia e felizes com seu tamanho extra-large acabam rendendo-se ao sistema que garante que algo está errado. Felicidade não pode combinar com quilos a mais no manequim. E mesmo as pobres mortais que (ainda) estão com o corpo nos conformes são bombardeadas com reportagens sobre dietas, conversas sobre dietas, produtos light e diet e a certeza que é “natural” desejar ser magro.

Fiquei com vergonha pelo que os acadêmicos da Unesp fizeram e com pena das meninas que tiveram que passar por isso. Mas o episódio vem em boa hora para repensarmos um pouco nossos próprios preconceitos e o modo como cultuamos a magreza em nosso tempo. Para quem achava que bullying era coisa de escola primária, os marmanjos universitários provaram que maldade, preconceito e discriminação existem em todas as fases da vida. Mas provaram, principalmente, que a crueldade humana não tem limites.