Som e fúria

Vivemos num mundo de muitas vozes. Muita informação. Muito barulho por nada. Tempestades em copo d'água. Uma verborragia desenfreada. Parece que precisamos falar e ouvir o tempo todo. Ouvir a última do vizinho. As notícias do dia. Ouvir as sirenes, buzinas, o lamento do vencido, a comemoração do vencedor. A TV ligada por hábito. Ouvir e não calar. Falar sobre si. Sobre os outros. Sobre a última tragédia. Sobre o jogo de futebol. Sobre a previsão do tempo.

Parece até que o silêncio é pecado.

terça-feira, 29 de julho de 2008

Muito som e pouca fúria

Acorda de manhã com o despertador, desesperado. Liga o rádio, para se inteirar do que está acontecendo no mundo: previsão do tempo, últimas notícias, resultados do futebol, trânsito. Dirige em silêncio. Ao longo do dia, muitos sons. Ininterruptos sons. Que interpelam, desafiam, invadem. Milhares de nuances sonoras.
Aos poucos, comecei a perceber que a gente não tem muito poder sobre o silêncio. Às vezes ele até é mal interpretado. Repudiado. Abominado. O silêncio nos causa desconforto. Mal-estar. Nos acostumamos ao ruído constante que nos ensurdece para a vida. Nem percebemos que estamos surdos – e faz tempo.
Eu percebi – e me assustei – quase por acaso. Foi numa reunião onde assistimos um vídeo com algumas imagens do fotógrafo Ita Kirsch. A apresentação, com belíssimas fotografias, estava sendo projetada no telão. Passaram-se 10 segundos. Uma imagem, mais outra, as pessoas todas começaram a se olhar, um ponto de interrogação pairava sobre a sala: cadê a música? Começou um burburinho. O fotógrafo impassível, mirando a projeção. As imagens, exuberantes, continuavam passando, uma a uma. Um silêncio estarrecedor e quase sufocante. Confesso que foram os oito minutos mais longos da minha vida. Ninguém vai verificar o volume? Será que esqueceram de anexar a música? Deu algum erro? As caixas de som estão estragadas? Uma agonia surda instalou-se no ar por alguns instantes. Cochichos. Olhares furtivos. Pessoas inquietas nas cadeiras. Parecia que faltava alguma coisa. Aos poucos, todos começaram a se aquietar. Até o final da apresentação, o silêncio tornou-se absoluto.
Faltava mesmo alguma coisa. Tão acostumados estamos ao som que não nos entregamos por inteiro aos nossos outros sentidos. Não conseguimos mais apreciar uma sequência de belas imagens atentando-se apenas a visão que, no caso de uma foto, é o que realmente importa. Me assustei muito com o desconforto coletivo mas, principalmente com o meu próprio desconforto.
Por que a gente não se permite mais ficar em silêncio? É como se a nossa vida tivesse que ser preenchida por sons em todas as lacunas. Como se as lacunas precisassem ser todas preenchidas deliberadamente. Como se o silêncio fosse uma falta e não um ganho.
Não é que eu pense que a vida não precisa de som. Talvez precise apenas de sons mais verdadeiros. Talvez existam sons dentro de nós lutando para se tornarem audíveis frente a esse caos que se instalou aqui do lado de fora.
Talvez os sons que a gente anda escutando não sejam aqueles que verdadeiramente queremos e precisamos escutar. Porque precisamos de mais fúria. Fúria para fazer nossas próprias escolhas. Para ter o poder de decidir o que ouvir ou o que dizer. Aquilo que verdadeiramente importa. Nem que seja o próprio silêncio. Fúria para escolher os próprios sons.
Este blog nada mais é do que um acesso de fúria. Nada de postagens diárias. Nada de postagens supérfluas. Nada de agenda setting. Nada de muito importante no meio da gritaria incessante do dia-a-dia. Apenas a fúria contida nos meus silêncios.

“Qual é a ameaça contida no silêncio? Ou qual é o som que não suportamos ouvir para precisar cobri-lo com o ruído ininterrupto de nossa voz? Vivemos com muito som e pouca fúria” Eliane Brum