Som e fúria

Vivemos num mundo de muitas vozes. Muita informação. Muito barulho por nada. Tempestades em copo d'água. Uma verborragia desenfreada. Parece que precisamos falar e ouvir o tempo todo. Ouvir a última do vizinho. As notícias do dia. Ouvir as sirenes, buzinas, o lamento do vencido, a comemoração do vencedor. A TV ligada por hábito. Ouvir e não calar. Falar sobre si. Sobre os outros. Sobre a última tragédia. Sobre o jogo de futebol. Sobre a previsão do tempo.

Parece até que o silêncio é pecado.

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Crônica de um espanto

Dentro do ônibus, a caminho de casa, a mãe e a criança sacolejam ao ritmo lento de um dia pesado, quente e interminável. O menino estava deitado no colo. Aparentava ter não mais do que cinco ou seis anos de idade. Observava, atento, a infinidade de tipos humanos a sua volta. A mãe tinha a face fechada e os pensamentos absortos em algo que parecia lhe preocupar. Eles estavam próximos a roleta, e assim todas as pessoas que passavam migravam pelo olhar curioso do menino.

No início do trajeto, embarca no veículo um ser excêntrico, porém invisível aos olhos dos passageiros. Estava ali, mas ninguém via. Aos olhos da criança, uma mistura de medo, alegria e curiosidade.

Os minutos correm, e o menino não consegue tirar os olhos daquela figura quase grotesca. Tamanho magnetismo carrega, que o pequeno não desgruda o olhar um segundo sequer. O homem e sua fantasia de palhaço permanecem absortos no sacolejar do ônibus e nem percebem a presença do menino.

Era um palhaço triste aquele, com sua camiseta desbotada e puída, suas calças curtas e sua maquiagem salpicada de suor. Sua face em nada lembrava a alegria dos picadeiros, suas mãos calejadas, suas unhas sujas e seus sapatos gastos pareciam afastar qualquer manifestação de alegria que pudesse vir de seu corpo.

Ainda assim, o menino continuava mirando, como que a espera que dali saísse um sorriso, uma exclamação. Não satisfeito, o garoto importunou a mãe até que esta também olhasse para o palhaço, consentindo o seu encantamento infantil. A mãe, contrariada, não viu a mesma magia que o menino quando seus olhos encontraram os escombros daquele homem.

Todos os dias ele pegava o mesmo ônibus, após trabalhar sob o sol e sob a chuva, numa das sinaleiras do centro da cidade. Trocava seu sorriso por uns trocados, prostituía a sua arte por algumas moedas de pouco valor. E muitas vezes acabava o dia no bar, investindo aqueles poucos tostões num copo de cachaça. Tudo isso para esquecer a invisibilidade, esquecer o sofrimento, a fome e a vontade de desaparecer de verdade dessa vida sem saída.

Naquele dia o menino enxergou o palhaço por detrás do homem. E após uma piscadela, quase que por acaso, os olhos do palhaço se cruzaram com os do menino. E, naquele infinito segundo, o palhaço invisível deu lugar a um sorriso, que há tempos não habitava aquela triste fantasia. Naquele mesmo segundo – homem, palhaço, menino – fundiram-se todos num olhar de cumplicidade e espanto.

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