Som e fúria

Vivemos num mundo de muitas vozes. Muita informação. Muito barulho por nada. Tempestades em copo d'água. Uma verborragia desenfreada. Parece que precisamos falar e ouvir o tempo todo. Ouvir a última do vizinho. As notícias do dia. Ouvir as sirenes, buzinas, o lamento do vencido, a comemoração do vencedor. A TV ligada por hábito. Ouvir e não calar. Falar sobre si. Sobre os outros. Sobre a última tragédia. Sobre o jogo de futebol. Sobre a previsão do tempo.

Parece até que o silêncio é pecado.

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Peculiaridades do mundo virtual



Sala de pesquisa. Silêncio total. Adentra no ambiente uma colega do semestre passado que eu só descobri existir quando me adicionou no Orkut, há mais ou menos dois meses. Eu nunca tinha conversado com ela nem percebido sua presença nas aulas, por isso demorei um pouco para ligar o nome e foto à pessoa. Mas, quando vi nos amigos em comum vários colegas da Feevale, acabei aceitando o pedido de “amizade virtual”.

Essa mesma menina entra na sala e não me dá oi. Sequer olha para minha cara. Está com fones nos ouvidos e a música é tão alta que posso ouvi-la nitidamente. Senta em frente ao computador, enterra os olhos na tela e não menciona sequer uma palavra nas quase duas horas que permanece sentada na cadeira a menos de um metro de distância da minha. Depois, levanta e vai embora. Nem tchau. “Um bom dia para você também, amiga virtual”, penso eu nos meus devaneios.

Fiquei absurdamente incomodada com este episódio, imaginando cá com os meus botões em que espécie de mundo estamos vivendo e, principalmente, que espécie de relações interpessoais estamos construindo. A pessoa estuda com você mas, em todos os dias de convivência dentro da mesma sala de aula não se manifesta. Daí um belo dia ela veste sua roupa virtual e decide procurar você no Orkut e, mais do que isso, adicionar você como amigo. Depois disso a pessoa real – aquela correspondente a persona virtual que te adicionou – continua não se manifestando, como se não lhe conhecesse.

Juro que não entendi. Por que cargas d’água essa pessoa me quer na sua lista de amigos se finge não me conhecer quando me vê?

Já ouvi uma pesquisadora de cibercultura dizer – e concordei piamente – que muitos de nós hoje vivem em prol de alimentar nossa persona virtual. Tudo que fazemos deve ser divertido e único e, claro, devidamente registrado com fotos. Você já fotografa os momentos pensando em publicá-los no Orkut depois. Antes, fotografava-se para registrar um momento especial. Hoje, fotografa-se para que este momento pareça especial aos olhos dos outros – mesmo que ele de fato não seja tão especial assim. Quem nunca ouviu a frase infame que diz: “Essa é pro Orkut!” antes do clique?

Ao que parece estamos nos tornando simulacros de nossa própria realidade. Eu, a Pâmela do “mundo real”, posso levar uma vida medíocre e solitária, a ponto de me considerar auto-suficiente o bastante para não precisar me comunicar o mínimo possível com as pessoas ao meu redor. Em contrapartida, a Pâmela virtual – bem mais bonita, comunicativa e cheia de amigos – é quem definitivamente socializa e convive com os demais ícones e janelinhas piscantes do maravilhoso mundo da web.

Ficar triste? Jamais! As pessoas virtuais não sofrem. Tudo superam, tudo podem. Nunca são passadas para trás. Sempre se divertem nos finais de semana. Nunca estão de mau humor. São adoradas pelos amigos. Não tem problemas de qualquer ordem ou espécie. Escolher viver a persona real, como se vê, é para os corajosos. Uma amizade de verdade pode ser perigosa, cheia de sensações, dores, sabores e alegrias. Coisas triviais que só se vive quando deixa o mouse de lado. E nem precisa de internet banda larga para começar.

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Crônica de um espanto

Dentro do ônibus, a caminho de casa, a mãe e a criança sacolejam ao ritmo lento de um dia pesado, quente e interminável. O menino estava deitado no colo. Aparentava ter não mais do que cinco ou seis anos de idade. Observava, atento, a infinidade de tipos humanos a sua volta. A mãe tinha a face fechada e os pensamentos absortos em algo que parecia lhe preocupar. Eles estavam próximos a roleta, e assim todas as pessoas que passavam migravam pelo olhar curioso do menino.

No início do trajeto, embarca no veículo um ser excêntrico, porém invisível aos olhos dos passageiros. Estava ali, mas ninguém via. Aos olhos da criança, uma mistura de medo, alegria e curiosidade.

Os minutos correm, e o menino não consegue tirar os olhos daquela figura quase grotesca. Tamanho magnetismo carrega, que o pequeno não desgruda o olhar um segundo sequer. O homem e sua fantasia de palhaço permanecem absortos no sacolejar do ônibus e nem percebem a presença do menino.

Era um palhaço triste aquele, com sua camiseta desbotada e puída, suas calças curtas e sua maquiagem salpicada de suor. Sua face em nada lembrava a alegria dos picadeiros, suas mãos calejadas, suas unhas sujas e seus sapatos gastos pareciam afastar qualquer manifestação de alegria que pudesse vir de seu corpo.

Ainda assim, o menino continuava mirando, como que a espera que dali saísse um sorriso, uma exclamação. Não satisfeito, o garoto importunou a mãe até que esta também olhasse para o palhaço, consentindo o seu encantamento infantil. A mãe, contrariada, não viu a mesma magia que o menino quando seus olhos encontraram os escombros daquele homem.

Todos os dias ele pegava o mesmo ônibus, após trabalhar sob o sol e sob a chuva, numa das sinaleiras do centro da cidade. Trocava seu sorriso por uns trocados, prostituía a sua arte por algumas moedas de pouco valor. E muitas vezes acabava o dia no bar, investindo aqueles poucos tostões num copo de cachaça. Tudo isso para esquecer a invisibilidade, esquecer o sofrimento, a fome e a vontade de desaparecer de verdade dessa vida sem saída.

Naquele dia o menino enxergou o palhaço por detrás do homem. E após uma piscadela, quase que por acaso, os olhos do palhaço se cruzaram com os do menino. E, naquele infinito segundo, o palhaço invisível deu lugar a um sorriso, que há tempos não habitava aquela triste fantasia. Naquele mesmo segundo – homem, palhaço, menino – fundiram-se todos num olhar de cumplicidade e espanto.

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

Quem tem medo do vestibular?

Já faz algum tempo que percebi que a educação virou objeto de consumo, um produto a venda nas prateleiras das universidades, com direito a propaganda – muita propaganda – e preço pré-estipulado. Parece-me que hoje as pessoas não vão ao campus para adquirir conhecimento ou aprender mais sobre a profissão que escolheram. A academia virou passarela onde desfilam os modelitos da estação. Virou point de encontro da galera antes da balada. Virou shopping center e espaço de socialização, onde a última coisa que se faz é abrir os cadernos.
A imagem que as universidades querem vender – e vendem! – é de um lugar bonito, agradável, com pessoas jovens, sorridentes, felizes e lindas. O ensino não importa muito. É só dar uma olhada descompromissada na publicidade de qualquer faculdade particular. Todas mostram grupos de adolescentes em ambientes externos, ao ar livre, com muitas cores e movimento. Sala de aula? Muito chata e monótona para os consumidores de sensações que almejam freqüentar um ambiente descolado e sedutor.
Quando li a matéria “Aprovação sem dificuldades”, publicada na Zero Hora de hoje, percebi que as coisas continuam tão ruins quanto eu já imaginava. Para testar a facilidade de aprovação em vestibulares de instituições particulares, dois alunos de uma turma de alfabetização (Educação de Jovens e Adultos), se inscreveram em cinco vestibulares de inverno na cidade de Caxias do Sul, a pedido do Jornal Pioneiro. Adivinhem o que aconteceu?
O seu Eloir de Camargo, 39 anos e sua esposa Sueli de Oliveira, 32 anos, foram aprovados em todos os exames. Eles estão em fase de alfabetização e todas as provas que fizeram incluíam o teste de redação. A dona Sueli ficou surpresa: “Como pode ser tão fácil passar? Numa das provas eu não sabia nada sobre o tema da redação. Escrevi qualquer coisa e me dei bem”. Não me surpreendo nem um pouco, dona Sueli. Todo mundo se dá bem, é só pagar o boleto em dia no final do mês. E tem mais: todo mundo continua se dando bem depois, o que é ainda mais assustador. Saem formados, como muitos colegas jornalistas com os quais já estudei, sem saber articular uma frase concisa e com sentido. Isso acontece em todos os cursos. Tem gente demais se dando bem nesse mundo, dona Sueli!
O senhor Mauro Trojan, presidente da mantenedora da FAI (Faculdade dos Imigrantes de Caxias do Sul), uma das instituições na qual o casal fez o vestibular e passou, matou a charada. Segundo ele, o MEC determina que o candidato só não pode tirar zero. Se a pessoa tirou 0,5, por lei, ela tem direito de ser aprovada. Se tiver menos candidatos que vagas a pessoa é classificada. “Não divulgamos a classificação dos candidatos para não discriminar os últimos colocados”, diz ele.
Ah, bom! Agora eu entendi! O vestibular é só fachada, uma formalidade necessária, digamos assim. A dona Sueli e o seu Eloir só não vão poder estudar mesmo devido a uma outra formalidade legal, que exige que eles tenham o diploma do Ensino Médio. Outra coisa muito fácil de resolver, tendo dinheiro. Só fazer um supletivo a distância e ser feliz com o curso que bem escolher. A maior dificuldade deve estar mesmo em optar por um curso e por uma das tantas universidade existentes – como produtos atraentes nas prateleiras no supermercado.
Eu que já ouvi, com estes ouvidos que a terra há de comer, um amigo dizendo que escolheu estudar na Ulbra porque lá é o lugar onde tem mais “guria gata”, fico desesperançosa quanto ao futuro. Enquanto a sala de aula for um espaço apenas para tomar café, navegar na internet pelo laptop, mexer no celular, receber mensagens, ligações e toques ininterruptamente, nada vai mudar. Enquanto os professores continuarem fingindo que ensinam e os alunos fingindo que aprendem, as coisas vão ficar mesmo do jeito que estão.
O que garante, afinal, o diploma do Ensino Médio e o ingresso na faculdade? O direito de pagar por um canudo a longo prazo? A possibilidade de freqüentar e desfilar pelo feliz ambiente acadêmico? Se os alunos chegam à universidade com tamanha fragilidade e continuam sua trajetória acadêmica sem maiores percalços, onde está o erro? Pagamos pela titulação mas não recebemos a formação de fato. Que espécie de advogados, jornalistas, administradores, contadores, publicitários, designers, engenheiros, médicos e economistas estamos formando?
Um bom tema para a redação do próximo vestibular.